terça-feira, 30 de março de 2010

Desassossego

Fernando Pessoa


O amor é a mais carnal das ilusões.
Amar é possuir, escuta.
E o que possui quem ama?
O corpo?
Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria,
comê-lo, incluí-lo em nós...
E essa impossibilidade seria temporária,
porque o nosso próprio corpo passa e se transforma,
porque nós não possuímos o nosso corpo
(possuímos apenas a nossa sensação dele),
e porque, uma vez possuído esse corpo amado,
tornar-se-ia nosso,
deixaria de ser outro,
e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente,
desapareceria...

Possuímos a alma?
Ouve-me em silêncio: Nós não a possuímos.
Nem a nossa alma é nossa sequer.
Como, de resto, possuir uma alma?
Entre alma e alma há o abismo de serem almas.

Que possuímos? Que possuímos?
Que nos leva a amar ? A beleza?
E nós a possuímo-la amando?
A mais feroz e dominadora posse de um corpo
o que possui dele?
Nem o corpo, nem a alma, nem a beleza sequer.

A posse de um corpo lindo não abraça a beleza,
abraça a carne celulada e gordurosa;
o beijo não toca a beleza da boca,
mas na carne molhada dos lábios perecíveis e mucosas;
a própria cópula é um contato apenas,
um contato esfregado e próximo,
mas não uma penetração real,
sequer de um corpo por outro corpo...
Que possuímos nós? Que possuímos?

As nossas sensações ao menos?
Ao menos o amor é um meio de nos possuirmos,
a nós, nas nossas sensações?
É ao menos, um modo de sonharmos nitidamente,
e mais gloriosamente portanto,
o sonho de existirmos?
E ao menos, desaparecida a sensação,
fica a memória dela conosco sempre, e assim,
realmente possuímos...


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