domingo, 26 de setembro de 2010

A Descoberta

Isto eles já sabiam: havia os perfumes que ele mais apreciava, e sempre os chocolates e biscoitos prediletos na despensa, e dela havia as meias soltas sob as cobertas e enquanto divagava seu olhar se desviava para cima, as frases suspensas, as mãos se unindo como se unem as de uma criança. Ele gostava de abrir as embalagens meticulosamente sem rompê-las, mas a despia com a sede e a urgência de quem tem somente um segundo. Estavam então separados por apenas algumas horas, e era isto que os tornava agora, sozinhos em seus quartos, tão mais conscientes do silêncio. Se a este momento de ausência e arrebatamento ela juntasse papel e lápis, então o material e o abstrato, o interno e o epidérmico, tomavam forma em palavras escritas, cuidadosamente dispostas em versos ou crônicas. Ele dispensava as palavras. Sentado ao piano traduzia toda a subjetividade do que sentia em sons tangíveis, em melodia, tons, acordes e harmonia. Havia profundidade em ambos, e era assim que se percebiam, não só pelos gestos ou preferências, mas também através da Arte, pois neles emergia simbioticamente a necessidade de materializar a intensidade daquela sensibilidade em formas palpáveis, fossem versos ou música.
Assim apropriavam-se um do outro.

domingo, 19 de setembro de 2010

A Entrega

Ela estava inquieta. Relia as frases sem absorver-lhes o sentido, caminhava pela casa procurando algo, distraía-se, esquecia. Então buscava outro livro, abria-o aleatoriamente, lia algumas palavras, queria aquelas que traduzissem a intensidade daquilo que sentia. Não era enxergar as coisas com lentes cor-de-rosa. Via tudo tão transparente, as coisas tinham cor, cheiro e verdade. E era possível tocá-las, e o que ela sentia, ele incitava-a a falar.
Se ela se guardava poupando palavras, mascarando seus medos com cortinas de silêncio e displicência, ele percebia. Era pouco o tempo daquela intimidade, mas como ele lhe lia! Com algumas frases precisas, mas principalmente com o seu olhar, ele dissipava aqueles medos, trazia-a para outro lugar. E como era bom então estar ali. Aquele lugar existia! Tinha pés que se tocavam, mãos entrelaçadas, copo d'água, vela acesa, se ouvia risos na madrugada. Para que procurar palavras... Não havia mais limites para falá-las.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

As camélias sobre o musgo

" Quando senti pela primeira vez esse abandono delicioso que só é possível a dois? A quietude que sentimos quando estamos sozinhos, essa certeza sobre nós mesmos na serenidade da solidão, não são nada em comparação com o deixar-se levar, deixar-se ir e deixar falar que se vive com o outro, em companhia cúmplice... Quando senti pela primeira vez esse relaxamento feliz em presença de um homem? "

trecho de "A Elegância do Ouriço" de Muriel Barbery