sábado, 24 de abril de 2010

Terminei "A Brincadeira" (o livro)

E o que mais me encanta nos livros de Kundera, mais que a narrativa, a história em si, são as reflexões, as ponderações que os personagens fazem a cercas dos fatos, as sensações, suas descobertas, suas conclusões.
Depois da leitura, cheguei à minha conclusão também: a de que a vida é um fio, uma teia frágil, no qual estamos mais, ou menos, ligados uns aos outros. Uma palavra, um ato impensado, uma "brincadeira" aparentemente inofensiva, uma escolha aleatória mas que certamente nos leva a determinada direção, fatalmente vai estirar o fio no outro sentido. O fio pode romper, pode-se perder o fio...

"Então, vi Lucie pela primeira vez. ...porque, ao cruzar com ela, não continuei meu caminho? Teria sido pela estranha ociosidade de minha perambulação? Teria sido a luz singular do pátio naquele fim de tarde que me fez retardar o passo e me impediu de voltar à rua?" (.......)
"...mas desta vez houve de fato uma espécie de visão: a essência de Lucie ou - se devo ser inteiramente preciso - a essência daquilo que Lucie se tornou depois para mim, eu a compreendera, sentira, vira imediatamente e de uma só vez: foi essa essência mesma que Lucie me trouxe, como se trazem verdades reveladas." (........)
"Diria que sentia então, o desejo total de uma mulher, em que todo meu ser estava engajado, corpo e alma, concupiscência e ternura, tristeza e um furioso gosto de viver, uma fome violenta de vulgaridade e reconforto, sede de um segundo de prazer e também de uma posse eterna."

Às vezes, a vida é como um livro. Às vezes, como crianças mimadas, reagimos frente as circunstâncias da vida com a displicência de quem tem um tempo infinito, ou nos aborrecemos, recolhemos nossos brinquedos, desistimos da brincadeira, e nos sujeitamos a romper o fio, definitivamente. Às vezes, o acaso nos coloca frente a frente com nosso destino. Mas às vezes, ou quase sempre, somos nós que temos a chave para decifrar e escrever a nossa própria história, a decisão é nossa, cabe a nós a opção de atuar no último ato. É possível se eximir, calar-se, escolher o silêncio, a inércia, ou dar o passo decisivo que nos faz donos do nosso arbítrio, que traz para nossos ombros a responsabilidade, o peso da consequência, que nos faz assumir por conta própria, o prazer, ou a dor.

"Nesses tempos eu me sentia como que atravessado por um deserto: eu era um deserto dentro de um deserto e tinha vontade de chamar Lucie. De repente não podia compreender porque tinha desejado seu corpo com tanta loucura; parecia-me agora que talvez ela não fosse uma mulher de carne, mas uma coluna transparente de calor que atravessava o império do frio infinito, coluna transparente que se distanciava de mim, enxotada por mim mesmo."
(........)
"Assim eu concebia, assim eu me explicava as coisas, e a medida que os anos passavam, já sentia quase medo de revê-la, pois sabia que nos encontraríamos num lugar em que Lucie não era mais Lucie e que eu não teria mais como reatar o fio. Não quero dizer com isto que tenha deixado de amá-la, que a esquecera, que sua imagem desbotara; ao contrário; ela morava em mim dia e noite, como uma silenciosa nostalgia; eu a desejava como se desejam as coisas perdidas para sempre."

É então aí que reside a beleza? A beleza do amor irrealizado, quimérico, de um prazer que só existiu em sonho e por isto é perfeito, e por isto tem as cores vivas de uma manhã fresca e azul, com as nuances que eu quiser, tem as palavras adequadas ditas em tom suave, o aroma mais preciso, a melodia mais doce.
Talvez seja este o amor dos indolentes, os que escolhem a apatia, a reclusão, a imersão, à aventurarem-se na travessia e correr riscos; mas também o amor de que se servem os poetas, os artistas, aqueles que tem a inspiração apoiada na dor, na ausência e na solidão.

O livro é triste sim, o final é melancólico. Mas é apenas o fim de uma história, fruto do acaso, permeada de impossibilidades que só fazem maximizar o desejo; e por não ter se consumado, bela como a perfeição dos sonhos. Mas é apenas uma história...

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